Entre tantas notícias e artigos que despertam desalento, fez-me bem ler o que escreveu a juíza Andréa Pachá sobre um menino que tem nome de Anjo. Gabriel, em aramaico, significa "homem forte de Deus". O menino brasileiro suportou muita coisa, foi criado longe da família e cedo teve contato com a burocracia que emperra a vida. Gabriel teve a sorte de encontrar pela frente uma juíza sensível que sabe ouvir. Eis sua história.
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Por Giotto di Bondone, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=94608 |
Direito à Esperança (de Andréa Pachá)
Todos temos direito de renovar nossos desejos e sonhos
"Sentada na poça do próprio sangue, no chão do Hospital Pedro II, Paula tentava fazer Dalila chorar. Orientada para massagear as costas do bebê, por vozes dos que registravam a cena do parto, mãe e filha eram o retrato do descaso, do desamparo e da solidão. A forte imagem parecia encerrar a retrospectiva de um ano que começou com a execução brutal de Marielle, sepultou milhares de jovens, transitou pela intolerância e ódio e nos levou a um dos períodos eleitorais mais conturbados da história, com o atentado contra o então candidato, hoje presidente eleito.
Apesar das tragédias, no entanto, chegamos ao fim de mais uma volta em torno do Sol e, como seres dos ritos e dos símbolos, para não sucumbir ao pessimismo e à indignação que paralisam, temos direito de renovar nossos desejos e sonhos. Escolhi, então, uma história, cuja lembrança é um sopro de coragem e alegria, na afirmação da esperança e da justiça:
“Após atormentar o Cartório e ameaçar virar traficante caso não falasse com o juiz, o menino, sentado na minha frente, constrangido pelo ambiente, tentava explicar a urgência:
— Não tenho tempo pra voltar aqui não. Eu trabalho todo dia.
Embora ele tivesse duvidado da minha autoridade, pela falta da roupa preta e do martelo da mão, prosseguiu: — Ontem, fui buscar uma cesta básica e, quando voltei, a polícia me parou porque achou que eu era bandido. Deve ser porque sou preto. Mostrei minha carteira de trabalho e só tem meu nome, mais nada. Tô tentando há mais de ano resolver o resto e todo dia me mandam voltar depois. Agora inventaram que eu tenho que fazer um exame. Eu sei quem sou, sei quem é minha mãe e sei que dia eu nasci.
Gabriel era um de seis irmãos, abandonado pela mãe, de pai desconhecido e sem qualquer documentação. Três anos antes, uma equipe da prefeitura os encontrou e levou-os para um abrigo. Na época, imediatamente todos foram registrados, apenas com um nome na certidão. Alguns voltaram para casa de familiares, outros sumiram, perderam o fraterno contato e nunca mais souberam da mãe ou descobriram quem era o pai. Por mais paradoxal que seja, pode-se dizer que Gabriel teve sorte. Conseguiu emprego e tirou carteira de trabalho só com o nome próprio.
Há quase dois anos corria atrás do déficit de cidadania. Envolto na burocracia excessiva, seu caso foi tratado como mais um, dentre tantos. Ofícios, citações, tentativas de localizar parentes e, na falta de qualquer comprovação quanto à idade dele, aguardava-se um exame médico que indicasse o ano do nascimento.
Nada mais inoportuno do que um processo para traduzir a eloquência do olhar de Gabriel. Nada mais perverso do que o absurdo de submetê-lo a tais exigências. A rede legal de proteção é para ser usada a favor do cidadão, e não para transformar em suspeito um menino, que jamais protagonizou sua vida e nem possui instrumentos mínimos de inserção social.
A excessiva desconfiança para a comprovação dos dados reforçava o preconceito contra os suspeitos de sempre. Tantos cuidados e nenhum cuidado para atender quem mais precisa da justiça. Tanta cautela e nenhuma preocupação em não presumir a má-fé de um ser humano. O rapaz era apenas um, entre os mais de 600 mil brasileiros sem registro de nascimento, segundo apontou o IBGE em 2010.
—Então, Gabriel, você disse que é filho da Dona Maria e nasceu em Petrópolis, no dia 20 de dezembro de 1991? —Posso pedir uma coisa? Dá pra eu nascer dia 1º? É que dia 20 fica muito perto do Natal, e todo mundo esquece o meu aniversário.
Quase 20 anos sem registro, dois anos num emaranhado burocrático para provar que existe, a vergonha de ser confundido com um ladrão de cesta básica, a ameaça de virar traficante, 19 dias de antecipação de um nascimento?
— Claro que dá!
Com a certidão na mão, ele finalmente acreditou que eu era juíza.”
Que a coragem de Gabriel restabeleça nossa esperança e nos motive a transformar em realidade a dignidade, e todos os direitos humanos, especialmente o direito de existir e de ser sujeito de direitos.
Um ano mais doce e mais luminoso para todos nós!"