sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Um Judeu no Natal

Quando o Natal se torna festa nacional no Iraque, lembrei do artigo de Arnaldo Bloch escrito para o Globo há alguns anos. O Parlamento iraquiano acaba de decidir por unanimidade que o Natal será uma festividade para todo o país a partir deste ano. A decisão adquire um significado ainda mais profundo tendo em vista a Viagem Apostólica do Papa Francisco ao país islâmico, programada para março de 2021. Me emociona que a beleza do Natal seja percebida pelas outras Religiões, afinal todos buscamos o mesmo Deus!

Uma única vez entrei numa sinagoga; foi para participar do Bar-Mitzvá de um paciente do meu marido. Acostumada com as igrejas católicas, enfeitadas com vitrais, estátuas e imagens de santos, estranhei as paredes brancas e a ausência de símbolos à mostra. Em dado momento, abriu-se um armário de onde foi tirado um enorme rolo de papel. Era a Torá, o livro sagrado dos judeus! Isto chamou minha atenção, me encheu de respeito. Mas o que me comoveu profundamente foi a beleza das palavras das orações judaicas. Pude lê-las num dos livrinhos deixados para os convidados. As preces estavam traduzidas para o português nas páginas do lado esquerdo, e no lado direito expostas no original. Quanta poesia na maneira de se dirigir a Deus! As lágrimas escorriam enquanto eu acompanhava, reverentemente, a cerimônia e as orações aprendidas há 2000 anos pelo meu querido Jesus!

Torá

Um judeu no Natal 
de Arnaldo Bloch

"Mexiam com meus sentidos a luz, as árvores, os enfeites e a linda e melancólica ‘estrela brasileira no céu azul’, da marcha-rancho da Varig
Num recente e bonito texto em sua coluna na “Folha de S.Paulo”, sob o título “Neste natal, seja judeu”, o publicitário Nizan Guanaes saudou o elo espiritual que une o povo de Abraão por meio de sua cultura, sua iniciativa e seus ritos, como exemplo para todos os povos. Em especial aqueles que, no dia de hoje, celebram o nascimento de Jesus. Nizan me fez pensar: o que é, por outro ângulo, ser de fato judeu durante a festa?

Todo ano me perguntam: “Vocês têm Natal?” Respondo com memórias. Que, desde menino, mexiam com meus sentidos a luz, as árvores, os enfeites e a linda e melancólica “estrela brasileira no céu azul”, da marcha-rancho da Varig. Aos 5 anos, fui ao Maracanã ver Papai Noel pousar de helicóptero. Eu tinha 100% de certeza que se tratava, ali, no gramado, do bom velhinho, o original, onipresente e eterno.

Já aos 10, em Copacabana, na véspera da ceia, um menino com quem jogava futebol na praia puxou a gola de minha camisa.

— O que aconteceu com você? Nasceu e disseram que ia ser judeu?

— Judeu, católico, preto, branco, árabe, índio, é tudo gente — reagi.

— Como é que é? — ele desconfiou.

— E digo mais: na Bíblia, o pai de Jesus era o Deus do Velho Testamento — completei.

Ele fez um suspense, largou minha camisa e deu o veredito.

— Então tá combinado.

E voltamos a jogar bola como se nada tivesse havido de importante.

Não demorou para me dar conta de como são fortes, para além do ensejo de Nizan, as ligações da data com o judaísmo: afinal, o menino da manjedoura nasceu judeu. No oitavo dia, quando foi circuncidado, recebeu o nome Yeshua ben Yossef (Jesus, filho de José). É o que narram tanto Mateus quanto Lucas. No calendário está escrito: 1º de Janeiro, Dia da Circuncisão do Senhor.

Aos 13, Jesus celebrou seu Bar-Mitzvá, a se crer no episódio da conversa com os Doutores da Lei, os rabinos, em Jerusalém. Maria e José, diz o Evangelho, estavam, comovidos. Mais tarde, na caravana de Nazaré, deram por falta do filho. Jesus ficara no Templo, com os barbudos, imerso em debates sobre a mística, a ética e os mistérios da vida.

Como judeu, Jesus, revolucionário, morreu. A inscrição do acrônimo INRI na cruz (do latim, Iesus Nazarenus, Rex Iudaeorum) se traduz por “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Pilatos, governante da Judeia, zombava da liderança daquele que se dizia rei do seu povo. Um povo dividido. Mas seu.

Por isso intrigava-me quando Carlos Heitor Cony, nas reuniões de família, dizia que a doutrina cristã era o judaísmo embalado num baita pacote de marketing. E quando meu tio Adolpho, com genuíno carinho, contava que os hebreus perderam Jesus Cristo por um problema de relações públicas.

Seja como for, devo confessar que minha ligação com o Natal, no correr dos anos, passou a encontrar maior ressonância no terreno culinário, não menos divino. Poucas combinações são tão perfeitas quanto peru, arroz, farofa, molho, salada de aipo com maionese e vinho tinto. Por isso, sempre que um bondoso cristão convida o judeu aqui para a ceia, não reluto. Do contrário, dou um jeito de me arrumar, num disque-tudo, ou na padaria da esquina. Feliz Natal."

O Globo, 26/12/18 

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