Meia dúzia de observações à volta deste romance
Primeira Observação – Já um dia escrevemos, e, agora, aqui repetimos sinceramente: “De estilo fácil, fluente, sem exibicionismos nem arabescos, imprimindo a tudo um cunho de profunda verdade, Jane Austen legou-nos um maravilhoso tesouro literário: tesouro que encerra toda a grandeza, toda a imperfeição, toda a caricatura da alma humana”.
Precisamente, caricatura! Eis o que este romance de Jane Austen, intitulado no original “Northanger Abbey”, e ao qual nós preferimos por em português o título bem justo de “O Mistério de Northanger” – nos oferece página a página, figura a figura, episódio a episódio.
Sim, uma caricatura, mas sem exageros, sem excessos de traço, sem intenções de maldade. Apenas, digamos, a luz da verdade coada pelos olhos sorridentes da juventude.
Foi este, afinal, o primeiro romance escrito por Jane Austen. Escrito às escondidas, a medo, sem ainda, de modo algum, sonhar em ser uma das maiores escritoras do seu tempo e do seu país. E o mais curioso é que essa isenção de celebridade vem imediatamente à superfície, dando-nos uma história contada com toda a naturalidade, sem qualquer espécie de transigência para com o leitor. Daí, sem dúvida, podemos extrair o maior mérito deste primeiro romance de Jane Austen: a franqueza total com que o escreveu.
E de tal modo que imaginado e desenvolvido, aí por volta de 1796 (tinha ela vinte e um anos apenas) – somente foi editado em 1817, o seu último ano de vida.
Curiosa coincidência, na verdade, que dá a este livro um tom palpitante de interesse: embora o primeiro a ser escrito, foi o último a ser publicado. E por quê? Porque a autora se atreveu a satirizar a literatura que então estava em moda: a chamada literatura de terror. Mas isso será já objeto de outro comentário.
Segunda observação – A série começara, por assim dizer, com “O Castelo de Otranto” de Horace Walpole – e logo se seguiram imensos imitadores, especialistas em criar climas fantásticos para as suas obras. Um William Beckfort com esse estranho “Vathek”, aparecido em 1782, e, muito especialmente, a consagrada Ann Radcliffe, vieram dar novo impulso aos romances terroríficos.
Pois precisamente em 1796 saiu o mais famoso dos romances de Ann Radcliff, “Mistérios de Udolfo”. Uma das suas leitoras mais atentas foi, sem dúvida alguma, por aquilo que ela própria nos conta, uma rapariga simpática chamada Jane Austen, que então vivia em Steventon.
E nesse mesmo ano de 1796, essa mesma rapariga (Jane Austen) começou a escrever um romance que é este mesmo romance que nós aqui apresentamos agora “O Mistério de Northanger”.
Sátira apenas à literatura aterrorizante, que punha em sobressalto os corações e os cérebros? Não! Algo mais. Bastante mais – porque nas figuras de Catarina Morland e de Isabella Thorpe há todo um tratado de psicologia feminina.
Terceira Observação – E, digam-nos o que disserem, nós estamos certos que Catarina e Isabella são figuras copiadas da realidade. Aliás, grande parte da ação passa-se em Bath, uma estância de veraneio que Jane Austen conhecia maravilhosamente. E por isso mesmo, o seu retrato dos veraneantes é perfeito. Perfeito e eterno. Ainda hoje lá podemos encontrar Mrs. Allen, infeliz por não conhecer toda a gente, uma Mrs. Thorpe, com o bando das suas filhas para casar, um João Thorpe, apaixonado pelas emoções violentas, um Henrique Tilney, pondo em alvoroço o coração das raparigas, e muitos outros personagens que o delicado espírito de Jane Austen soube transportar para a sua obra.
Pois, não há na própria Catarina Morland muita da sensibilidade de Jane Austen? Pensamos que sim. Ela foi, decerto, uma autora que se fragmentou pelas suas heroínas . E aquele pequeno diálogo no capítulo Vll, entre Catarina e João Torpe sobre a leitura de romances é bem elucidativo.
Ele, o homem, defende a teoria de que nunca se escreveu nada melhor do que o “Tom Jones”. Ela, a rapariga, manifesta o seu interesse apaixonante pelos “Mistérios de Udolfo”.
Quarta Observação – E ainda a propósito de leituras e leitores, salta-nos à vista uma indispensável observação, quando alcançamos o capítulo XIV e assistimos em pensamento esse belo passeio que Catarina deu no Beenchencliff, a convite da família Tilney.
Então, a certa altura, talvez por inspiração da própria paisagem, Catarina Morland e Henrique Tilney armam entre si um excelente diálogo de sabor literário.
De novo, o romance de Ann Radcliff “Os Mistérios de Udolfo” vem à baila. Mas aqui é defendido por ambos – a preparar habilidosamente, da parte de Jane Austen, o espírito do próprio leitor.
Catarina duvida que Henrique leia novelas, porque diz ela “Essas obras não devem bastar-lhe. Os homens necessitam de ler obras superiores”.
Mas logo Henrique estabelece o conceito “Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, que não aprecie um bom romance, deve ser de uma estupidez intolerável”.
Seguem-se nessas páginas, através da conversa, a que também se associa a inteligente e sensata Leonor, irmã de Henrique – alguns pontos de vista bem curiosos sobre a influência da leitura e a diferença de interesse, para os leitores, entre a história propriamente dita e o romance de ficção.
E custa a crer – agora, a tão grande distância, no tempo e no espaço – que uma rapariga tímida e solitária, de 21 anos, possuísse já dentro de si tão grande bagagem intelectual.
Quinta Observação – Raramente o leitor de um livro será tão habilmente orientado pelo autor, para um objetivo premeditado, como acontece com o leitor normal de “O Mistério de Northanger”.
Desde o início do romance, Catarina Morland é o guia que leva o leitor consigo. E de tal modo se insinua em todos nós, que passamos a viver junto dela, acompanhando-a nos seus pensamentos, nas suas tristezas, nas suas alegrias, nas suas ansiedades.
E, assim, do mesmo modo, o leitor a acompanha também nos seus terrores quando chega à velha abadia de Northanger, agora transformada em residência de um general estranho e despótico, e dos seus dois filhos.
Não queremos nem devemos tirar a surpresa do leitor. Mas confessamos com toda a sinceridade que bastam os capítulos XX, XXI, XXII, XXIII e XXIV para fazer deste livro uma obra modelar no seu gênero.
Sexta Observação – E, contudo, não foi logo compreendido. Calmamente, Jane Austen guardou-o, de novo, na gaveta da sua escrivaninha e, sem se desiludir, continuou a escrever. publicou uma "Razão e Sensibilidade” (em 1811), um “Orgulho e Preconceito” (em 1813), um “Parque de Mansfield” (em 1814), uma “Emma” (em 1816) e um “Sangue Azul”¹ (em princípios de 1817).
Ela aproximava-se do fim. Nova ainda. Nascera quarenta e dois anos antes. Mas como as flores que murcham, às vezes, sem se saber porquê, ela ia murchando. Talvez lhe faltasse o calor de uma paixão forte. Talvez...
De qualquer modo – esse ano de 1817 foi o último da sua vida. E por coincidência bizarra do Destino, como já dissemos, os editores vieram buscar-lhe então o romance que tinham rejeitado², “Northanger Abbey”, “O Mistério de Northanger”. Este mesmo romance que lhe oferecemos agora a sua curiosidade, leitor amigo, e que é bem o símbolo do talento de Jane Austen!
GENTIL MARQUES
1 No Brasil, “Sangue Azul” foi chamado “Persuasão”.
2 Sob o título “Susan”, “A Abadia de Northanger” foi vendido por 10 libras a Benjamin Crosby, em 1803, mas não foi publicado. Em 1816 , um dos irmãos da autora comprou o manuscrito de volta pela mesma quantia.
Felicity Jones como Catherine Morland em "Abadia de Northanger" |
Nenhum comentário:
Postar um comentário